UMA REFLEXÃO CRÍTICO-FILOSÓFICA SOBRE PADRE CÍCERO E ALGUNS FATOS DE SUA VIDA. (Dom Samuel Dantas de Araújo OSB)
2) SOBRE O SEU ENVOLVIMENTO COM A POLÍTICA
Alguns
dos inimigos do Padre Cícero, que conviveram com ele, o acusaram de ter se
envolvido com política. Não foram poucos os que depois de sua morte, disseram
que uma canonização seria improvável porque ele adentrou no mundo da política.
Antes
de tecer algumas considerações sobre este ponto, ainda hoje motivo de acesas
controvérsias, é bom recordar-nos, para não sermos injustos, que dificilmente
se encontra na história da Igreja um papa que não tenha sido político. Diga-se
a bem da verdade, que alguns o foram e até demais.
Aqui
no Brasil, não faltaram casos de eclesiásticos que também se envolveram com
política e nem por causa disto foram excomungados ou declarados pela autoridade
eclesiástica hereges impenitentes. Tenha-se em vista, a título de exemplo, que
dom Francisco de Aquino Correia, arcebispo de Cuiabá, chegou a ser governador
do seu estado Natal. Os padres José Martiniano de Alencar, pai do grande
romancista cearense do mesmo nome, e Tomás Pompeu de Souza Brasil, ocuparam o
cargo de senadores influentes do Império, além do que, coisa que Padre Cícero
não fez, tendo guardado intacta sua virgindade até o fim da vida, constituíram
família.
Talvez
muitos nunca tenham parado para refletir, mas se olharmos bem, não teremos
nenhuma dificuldade de perceber que uma paróquia, se parece muito com uma
unidade administrativa municipal e um padre,
posto pelo seu bispo à frente de um rebanho de fiéis sob seus cuidados de
pastor, e tendo de administrar dinheiro e pessoas, nos lembra um prefeito
eleito pelo voto popular para governar uma cidade. E por acaso uma Diocese com
suas muitas paróquias, tendo à frente um bispo que a governa, não nos faz pensar quase que naturalmente em
um estado regido por um governador?
Alguém,
pois, que tenha a responsabilidade de governar seres humanos, de certa forma
não acaba sendo um político? Ora, a que se destina a política? Cuidar do
bem-comum, respondem os entendidos. O que fazem, um padre em sua paróquia, e um
bispo em sua diocese? Cuidam do bem das ovelhas a eles confiadas. Logo, de
algum modo são políticos, e portanto, em
certo sentido, fazem política, retamente entendida.
Ao
que se disse porém, pode-se contra-argumentar e objetar que padre Cícero se
envolveu com a sórdida e abjeta politicalha partidária, aquela pela qual muitos
cidadãos politizados nutrem compreensível e justificada aversão sem limites,
por ser ela sinônimo de tudo quanto degrada o ser humano ao invés de
nobilitá-lo.
Quem,
todavia, acusou e talvez ainda acuse o padre Cícero de ter se envolvido com a
baixa política, a que privilegia o fisiologismo mais descarado, deveria
ponderar o que possivelmente o impeliu para um mundo no qual talvez jamais teria
ingressado se outras tivessem sido as circunstâncias.
Um
homem pode fazer certas coisas e tomar determinadas decisões menos por sua
vontade e íntima convicção do que pela súbita impetuosidade de acontecimentos
totalmente alheios a sua vontade, mas dentro dos quais vê-se precipitado, sem
que no entanto, jamais tenha tido a menor intenção de neles tomar parte ativa
na qualidade de protagonista atuante.
Imagine
quem puder o quanto não deve ter sofrido terrivelmente um homem que desde muito
jovem se mostrara extremamente sensível a dor alheia e de repente viu-se
privado do único meio de que dispunha para fazer o bem aos seus semelhantes: o
exercício do seu ministério sacerdotal! Que lhe restava fazer? Cruzar os braços
e ficar ocioso em sua casa, comendo, bebendo, dormindo e esperando o tempo
passar até que a morte viesse bater a sua porta?
Observou
dona Amália Xavier de Oliveira em seu livro “O Padre Cícero que eu conheci” que
foi graças ao infatigável zelo do novel sacerdote que em pouco tempo houve uma
completa transformação do povoado conhecido por todos como lugar de desordeiros
e viciados.
“Diariamente, reunia o povo na capela e
depois de rezar o Rosário, ensinava a doutrina, lendo e explicando trechos da
Escritura. Ensinava a rezar e a trabalhar. Aos desocupados obrigava a irem para
o campo plantar e tratar do roçado. Dia e noite, ficava no confessionário
atendendo os penitentes que o procuravam, quer da própria aldeia, quer vindos
de lugares distantes. Celebrava muitas vezes ao meio dia sem tomar alimento.
Dormia e comia mal. Muitas vezes encontramos seu padre pelos matos em busca de
casa de um que precisava dos sacramentos para morrer.” (OLIVEIRA, 2001, p. 58 –
9)
Lendo esta passagem do livro, é impossível não
se lembrar de que quando o hoje universalmente conhecido e amado cura de Ars,
São João Maria Vianey, chegou no lugarejo para onde o seu bispo o enviara,
encontrou-o em situação muito parecida aquela em que então se achava Juazeiro
quando padre Cícero ali chegou, um espaço com 32 residências entre casas e choupanas,
além naturalmente de um rebanho composto na sua maioria de ovelhas transviadas.
Em pouco tempo, o inexpressivo povoado, o qual
no futuro tornar-se-ia uma espécie de megalópole interiorana plantada na região
sul caririense, adquiriu uma outra feição, graças unicamente a ação
moral-civilizadora daquele que passaria a posteridade como o fundador de
Juazeiro do norte, e cuja memória continua a ser fielmente reverenciada(não sei
se aqui exagero) pelo Nordeste em peso. “Durante horas a fio, desde a manhã até
alta noite, recebia os romeiros, consolando-os através de sua benção amorável,
paternal. Respondia-lhes os telegramas e as cartas.” (MOREL, 1946, p. 64)
Perguntemo-nos pois, deixando de lado qualquer
espécie de preconceito ou malquerença gratuita: um homem que aceitou ir para
Juazeiro e que ali chegando dedicou-se de corpo e alma aos afazeres diretamente
relacionados ao seu ministério sacerdotal, um homem com estas qualidades e
virtudes, que até desafetos notórios não hesitaram em reconhecer, iria pouco
tempo depois tornar-se um embusteiro? O bom senso, e com toda razão, recusa-se
a crer que um sacerdote em extremo zeloso e tão dedicado ao serviço e culto divino,
cairia em um erro tão crasso. O próprio Deus, a quem padre Cícero dedicou sua
vida, que ama e defende seus fiéis servos, jamais o teria permitido.
Por ocasião da independência de Juazeiro, era
muito natural que todos os olhos se voltassem quase que espontaneamente para
aquele a quem o mesmo Juazeiro já devia muito, e cuja lista de relevantes e
beneméritos serviços prestados a gente daquele lugar desde que ali chegara, era
bem extensa. Não havia, pois, ninguém mais indicado e aparelhado para assumir o
governo do novo município.
Quanto ao que resultou de danoso da sedição
havida em Juazeiro, é sabido que padre Cícero ordenou terminantemente na
qualidade de líder incontestável e guia espiritual do povo que o reverenciava,
que fossem respeitadas as propriedades e a honra das famílias. Se houve
excessos condenáveis, estes ocorreram à sua revelia.
Em certos contextos, determinadas figuras
humanas destacadas aparecem como candidatos naturais para assumir certos
cargos. Foi assim, por exemplo, que por ocasião do Conclave que se seguiu a
morte do papa Pio XI em 1939, os senhores cardeais voltaram-se para o cardeal
secretário de Estado, Dom Eugênio Pacelli, e o escolheram como novo condutor da
barca de São Pedro num tempo bastante tumultuado, a pessoa mais apta e
qualificada para reger os destinos da Santa Igreja.
É o que costuma ocorrer também, para citarmos
um outro caso ilustrativo, quando uma agremiação político-partidária se reúne
em convenção para escolher quem será o candidato concorrente a uma sucessão
presidencial ou ao governo de algum estado. Via de regra, a escolha costuma
recair sobre o que mais se destaca por seu espírito de liderança e capacidade
administrativa.
É possível que coisa semelhante tenha se dado
por ocasião da escolha do nome do padre Cícero para ser o primeiro intendente
municipal de Juazeiro, depois que este alcançou a sua independência
político-administrativa, desvinculando-se do Crato. Não obstante o fato de ser
sacerdote, Cícero emergia como candidato naturalíssimo ao cargo, principalmente
por tudo que já havia feito em prol de Juazeiro. Seu prestígio sem limites era
tão grande à época, que nem o fato de estar suspenso de ordens(não podia
celebrar Missa) constituiu empecilho para que fosse escolhido.
Os acontecimentos o impeliram para a arena
política. A própria história de Juazeiro demonstra claramente que o padre
Cícero não se lançou candidato, mas digamos que “foi lançado.”
“Para
atender pedidos de muitos amigos, inclusive do então presidente do Estado, o
comendador Antônio Nogueira Acioly, aceitou o cargo de prefeito. Justificou sua
aquiescência dos pedidos, alegando temer que outro cidadão, na direção da
política local, não fosse capaz de manter o equilíbrio da ordem até então por
ele mantida.” (XAVIER, 2001, p. 166)
Se o padre Cícero já fizera muito por Juazeiro
apenas na modesta condição de desvelado pastor de almas, solícito pelo
bem-estar espiritual de suas pobres ovelhas, era natural pensar-se que muito
mais poderia fazer se fosse elevado ao cargo de primeiro mandatário municipal.
Acresce ainda que, não podendo celebrar a
santa Missa nem administrar os Sacramentos, o padre Cícero enxergou na ação
política uma oportunidade de seguir fazendo o bem aquele bom e sofrido povo ao
qual tinha heroicamente dedicado toda a sua laboriosa vida. Quando a motivação
é nobre e a finalidade boa, deve-se relevar todo o resto.
As acusações feitas contra Padre Cícero podem
ser reduzidas a três: 1) A de ter forjado um milagre que de fato não teria
ocorrido; 2) A de ter se envolvido com política; 3) a de ter se tornado um
milionário.
Sobre as duas primeiras, cremos já ter dito o
suficiente, cabendo a quem resolva pensar sobre uma e outra, chegar as suas próprias conclusões. Resta-nos
agora, verificar se tem ou não alguma consistência a terceira, e se o fato de
padre Cícero ter se enriquecido, pode
ser utilizado para culpabilizá-lo e como prova de canalhice imoral. Vejamos.
A julgar pelo número de bens móveis e imóveis
discriminados por Lira Neto em seu livro, não se pode duvidar que o fundador de
Juazeiro fosse realmente um homem endinheirado. Três coisas porém, devem ser
consideradas na fortuna amealhada por Padre Cícero, quais sejam: sua origem(que
não foi ilícita); o modo como ele viveu e por fim, o destino que resolveu dar
ao que possuía quando fez seu testamento.
Quanto à origem, diz-nos o mesmo Lira Neto que
“os bens que acumulara ao longo da vida obteve-os à custa das doações e esmolas dos romeiros.”
(NETO. 2009, p. 446)
Talvez muitos não saibam, mas uma parte do que
muitas ordens religiosas e pias instituições possuem é fruto do que lhes foi
dado por pessoas devotas e opulentas, as quais, antes de morrer, legavam em
testamento tudo quanto possuíam a conventos, mosteiros, paróquias e dioceses.
No passado, tal prática era bastante comum. Os doadores ou doadoras estavam
convictos de que os religiosos fariam um uso verdadeiramente cristão do que
lhes fosse doado.
No que toca ao modo de vida do padre Cícero,
aqueles que conviveram de perto com ele, sabem que não viveu nababescamente
como um príncipe secular, esbanjando dinheiro com coisas inúteis e supérfluas.
Prova disso, é que até sua morte envergou sempre uma batina surrada e remendada,
bem como o domicílio modesto em que
residiu no Juazeiro, que nada tinha do luxuoso aparato que se vê em certas
residências, inclusive de eclesiásticos. Se era rico pelo que tinha, não era,
contudo, apegado a riqueza nem seu escravo. Sobre a pobreza pessoal do padre
Cícero, escreveu o padre Azarias Sobreira com conhecimento de causa, porque
privou de sua intimidade, que ele “tinha o amor apaixonado da pobreza. Seu amor
a essa virtude se manifestava até no traje, uma grosseira batina de merinó ou
de brim, sapatos de lã preta, leito pobríssimo e na mesa, uma frugalidade bem
digna de imitação.” (SOBREIRA, 2011, p. 63)
O fato, porém, de ter deixado considerável
parte do seu espólio patrimonial para a congregação dos padres Salesianos,
mostra que na medida em que o padre Cícero ia consolidando sua fortuna,
certamente já sabia a quem ele a destinaria. Digno de nota – coisa que os seus
inimigos não quiseram considerar – é que padre Cícero, acusado em vida de não
apoiar a fundação de escolas em sua Juazeiro, com o fito de manter a população
nas trevas da ignorância – condicionou à destinação de boa parte dos seus haveres
a congregação fundada por São João Bosco à fundação em Juazeiro de instituições
educacionais destinadas a crianças de ambos os sexos, o que serve para mostrar
o quanto ele estimava a educação da juventude.
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