Templo prometido por padre Cícero é apontado como a 'igreja do fim do mundo'; entenda
Templo começou a ser construído em 1890 na Colina do Horto, em Juazeiro do Norte, mas teve obra parada e demolida. Uma nova igreja foi erguida no local.
Igreja do Bom Jesus do Horto durante cerimônia de dedicação em fevereiro de 2024 — Foto: Reprodução/Salesianos
Na cidade de Juazeiro do Norte, a meca do sertão nordestino, terra de padre Cícero, tinha uma igreja que parecia impossível construir. A obra começou em 1890, foi interrompida diversas vezes, demolida, retomada e sua construção se arrastou por décadas até ser parcialmente inaugurada em 2024. Tamanha dificuldade fez com que corresse entre os fiéis uma lenda: de que quando a igreja ficasse pronta, o mundo acabaria.
O poeta João Quinto Sobrinho, conhecido como Cristo Rei, resumiu a lenda popular que corre acerca da igreja do fim do mundo: “Depois que a Igreja estiver terminada, no chão da chapada como a ordem veio, segundo o decreto da Santa Natura, o mundo só dura três anos e meio”.
A famosa igreja era um sonho de Cícero. A ideia é que fosse construída no alto da Colina do Horto, onde hoje está a estátua do "padim". A obra, pensada inicialmente como uma capela, aos poucos foi crescendo, até chegar a um projeto grandioso de ser um dos maiores templos do Nordeste, com 12 torres e 12 sinos, que, quando ressoassem juntos, fariam seu som chegar até ao mar.
A obra iniciada por Cícero Romão Batista nunca avançou, e a igreja tampouco ficou pronta. Foram tantas décadas de entraves que a novela da construção ganhou contornos de fantástico.
“Na oralidade, os romeiros começam a dizer que aquela igreja ela não foi concluída e ela não pode ser concluída porque ela é a igreja do fim do mundo. Se um dia ela for concluída, o mundo vai se acabar”, explica a historiadora Fátima Pinho, professora da Universidade Regional do Cariri (Urca).
Para muitos, a igreja só seria concluída quando Jesus voltasse. Este enredo que relaciona a igreja ao fim do mundo faz parte de uma longa tradição da oralidade no Cariri, que coloca o Horto no centro de acontecimentos que vão desde inundações até o Apocalipse.
No dia 3 de fevereiro de 2024, mais de 130 anos depois, foi realizada a cerimônia de dedicação - uma espécie de abertura oficial - da igreja do Horto: a Igreja do Bom Jesus do Horto, e não a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, como queria o 'padim'.
O templo inaugurado em Juazeiro do Norte mais de um século depois tem pouco a ver com aquele com o qual o padre sonhou. Entenda o porquê:
Maquete da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, conforme projeto trazido da Itália por padre Cícero — Foto: Acervo de Renato Casimiro e Daniel Walker/UFCA
Uma promessa do padre contra a seca
Entre os anos de 1878 e 1879, o Ceará foi atingido por uma forte estiagem. Foi uma das mais secas mais severas até então, e marcou a memória da população daqueles anos. Quando isso aconteceu, Cícero Romão Batista já era sacerdote em Juazeiro do Norte há alguns anos.
Juazeiro era, até então, uma vila do município do Crato, mas crescia a passos largos. Em 1889, dez anos após a forte seca, todos os prenúncios indicavam uma estiagem forte novamente. Foi aí que padre Cícero e mais dois amigos fizeram uma promessa: se chovesse naquele ano, eles iriam construir uma capela dedicada ao Sagrado Coração de Jesus no alto da Colina do Horto.
A Colina do Horto, chamada anteriormente de Serra do Catolé, é uma elevação de cerca de 500 metros de altura, aos pés da qual se desenvolveu a cidade do Juazeiro do Norte. O Horto era um dos lugares favoritos do ‘padim’, e é onde, hoje em dia, ficam sua estátua, o museu e a estrutura conhecida como Santo Sepulcro.
Ainda antes da fundação do Juazeiro, o Horto já era um ponto de atenção dos primeiros habitantes da região, os indígenas Kariri. Inclusive, segundo pesquisas arqueológicas, o local foi um sítio religioso dos indígenas.
Uma das fábulas mais conhecidas na região é de que havia por ali uma Lagoa Encantada, onde morava a Mãe D’Água, uma enorme serpente com cara de mulher. A entidade, descontente com a invasão dos colonizadores, prometeu que um dia iria retirar uma pedra gigantesca que tampa a nascente do rio Batateira – um dos maiores do Cariri -, fazendo que uma toda a região fosse inundada.
Estátua de padre Cícero, inaugurada em 1969, fica no alto da Colina do Horto, em Juazeiro do Norte — Foto: Arquivo TVM
A ideia do padre não foi a primeira do tipo. Em 1878, quando o Ceará atravessava a forte seca, o primeiro bispo do Ceará, dom Luís Antônio dos Santos, prometeu dedicar o estado inteiro ao Sagrado Coração de Jesus, garantindo que iria erguer uma grande igreja com essa dedicação em Fortaleza.
No ano da promessa de dom Luís Antônio dos Santos, a seca castigou o Ceará. Mas no ano da promessa do ‘padim’, choveu bem. E como promessa feita é promessa cumprida, em 1890, um ano após o estado escapar da seca, padre Cícero deu início à construção da capela do Sagrado Coração de Jesus na Colina do Horto.
A igreja versus o padre
Nascido em 1844 na cidade do Crato, Cícero Romão Batista entrou para o Seminário da Prainha, em Fortaleza, em 1866. Em 1870, foi ordenado padre e voltou à sua terra natal. Em 1872, ele se tornou o capelão da Igreja de Nossa Senhora das Dores, no então povoado de Juazeiro.
Hoje, Juazeiro é a terceira mais populosa e quarta cidade mais rica do Ceará. Mas, na época, era uma vila do município de Crato - embora já fosse a maior vila do município. A região, inclusive, era chamada apenas de Juazeiro – o “do Norte” só veio em 1943 por decreto estadual.
Após se estabelecer no povoado, padre Cícero formou uma massa de fiéis por suas pregações, seu atendimento aos mais pobres castigados pela seca e contínuas visitas às casas da região. Ele fundou e ajudou a popularizar as chamadas casas de caridade e também formou alianças políticas na região.
Padre Cícero teve reconciliação com a Igreja Católica em 2015, atributo necessário para o processo de beatificação. — Foto: TV Verdes Mares/Reprodução
Quando o padre começou sua vida sacerdotal, só havia uma diocese no estado, a Diocese do Ceará, que concentrava todas as decisões eclesiásticas das igrejas no território cearense. Até a década de 1880, Romão e a Igreja Católica, representada pela diocese em Fortaleza, tinham uma relação harmoniosa.
A situação mudou a partir de 1889, com a repercussão dos chamados fatos extraordinários da beata popular Maria de Araújo. No dia 1º de março daquele ano, durante uma missa, ao colocar a hóstia na boca da religiosa, a hóstia teria se convertido em sangue. Devotos afirmaram se tratava de um milagre – a hóstia havia se convertido no sangue de Cristo.
Uma comissão da igreja afirmou que o suposto Milagre da Hóstia era inverídico. Teve início aí uma série de contendas do padre com a igreja. Cícero Romão teve as ordens sacerdotais suspensas e ficou proibido de celebrar missas e sacramentos em Juazeiro, mas podia celebrar em outras cidades, como no Crato. Todos os que defenderam o milagre tiveram depois que negá-lo publicamente.
Foi neste contexto, em 1890, apenas um ano após os fatos extraordinários, que começou a construção da capela do Sagrado Coração de Jesus da Colina do Horto. Conforme a obra andava, pelo tamanho, ficou claro que não seria uma capela, mas sim uma igreja.
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