“REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO RELIGIOSA”
É este o título de um dos capítulos do livro do padre Azarias Sobreira, “O Patriarca de Juazeiro”, o qual “conheceu pessoalmente em sua juventude o padre Cícero”, tendo tido o privilégio de palestrar não poucas vezes com ele. Na introdução do livro, que é uma pérola de elevado valor e cuja leitura é obrigatória para quem deseje inteirar-se de aspectos da personalidade e caráter do inesquecível fundador de Juazeiro, o padre Azarias escreveu que observou de perto o padre Cícero por dilatados anos. Este nosso texto contém, algumas considerações sobre a mencionada questão.
O que o segundo bispo do Ceará – Dom Joaquim José Vieira – queria saber era o seguinte: houve ou não um portento de ordem sobrenatural no interior da capela de nossa Senhora das dores no distante Juazeiro do Norte, lá onde um jovem sacerdote, imbuído do mais sincero e ardente zelo pela causa da Religião Católica apascentava com sua palavra e edificante vida uma porção do rebanho de Cristo?
Foi para tirar a limpo o que chegara aos seus ouvidos que o bispo, conhecido por sua elevada prudência incumbiu dois ilustres sacerdotes da missão de irem até Juazeiro com o fito de verificar se o alardeado milagre era ou não autêntico. Dom Joaquim, a circunspecção em pessoa, limitou-se em sua sábia decisão a seguir uma recomendação do Concílio de Trento, que dispusera o seguinte: “Não se deve aceitar novos milagres nem relíquias sem que houvessem sido reconhecidos e aprovados pelo bispo da Diocese; e que este, ao tomar conhecimento de alguma novidade nesse terreno, ouvisse teólogos e outros varões pios sobre o assunto, antes de tomar uma decisão. Afinal, que nada de novo e estranho à Tradição fosse aceito antes de ter sido submetido à aprovação do Papa.” (p. 313) Como convinha a quem tinha a delicada missão de velar pela fé católica em sua diocese, Dom Joaquim cumpriu à risca a determinação conciliar, no que não merecia qualquer censura.
Registra o padre Azarias em seu livro que “o cabeça desse elenco pericial não era outro senão o padre Clicério da Costa Lobo.” Monsenhor Vicente Sóter de Alencar, que disse por ocasião da morte do padre Cícero: “podem beijar a batina porque era um santo”, contou ao padre Azarias que estando ele em companhia do seu colega de sacerdócio Miguel Coelho de Sá Barreto aguardando o momento de falar com Dom Joaquim, apareceu o padre Clicério, já então de partida para Juazeiro e lhes disse em tom
de camaradagem: “Estou de malas arrumadas para o seu Cariri. Vou observar os falados prodígios de Maria de Araújo. Chegou a hora de ensinar o padre-nosso aquela gente.” Por estas palavras, pode-se supor que padre Clicério possivelmente partiu já prevenido para o Cariri, convencido em seu foro íntimo de que ali nada sucedera de sobrenatural.
Acerca do chefe da comissão diocesana, anota ainda o padre Azarias o seguinte: “Observe-se ainda que o sacerdote que por especial comissão do sr. Bispo de Ceará chefiou a delegação incumbida de averiguar os fatos religiosos surgidos na terra do padre Cícero, tanto pela santidade de sua vida como pela sua ilustração, era o mais destacado membro do clero da terra da luz. É isso tanto mais verdade quanto era ele o primeiro de uma lista de padres havidos como à altura de ocupar a Sé primacial do Brasil. Leonardo Mota, depois de ter lido tudo que se acha nos arquivos sobre sacerdotes nascidos ou postos a trabalhar em terra cearense, chegou à conclusão de que, em santidade de vida, nenhum de erguera mais alto do que o chefe da referida comissão, padre Clicério da Costa Lobo.” (pag. 308) Se o referido sacerdote estava sendo cotado para se tornar o bispo de Salvador, e portanto, primaz do Brasil, pode-se dizer que era um grande sacerdote.
Como companheiro de missão do padre Clicério, veio a Juazeiro outro ilustre eclesiástico. Seu nome era padre Francisco Ferreira Antero, que “primava pela circunspecção, tendo feito seus estudos na Europa, onde se doutorara, sendo por todos encarado como um valor dos mais dignos numa embaixada daquela natureza.” Além destes dois notáveis sacerdotes, “dois médicos de nomeada, ainda perfeitamente atualizados com a ciência do tempo, Ildefonso Correia Lima e Marcos Rodrigues Madeira, perfaziam o quadro ideal. Dum lado, sacerdotes de esmerada formação mental e vida sem mancha tomariam a si o aspecto puramente religioso dos fatos a serem estudados; do outro, facultativos de sólida reputação velariam no sentido de evitarem que se atribuísse explicação sobrenatural, ou mesmo preternatural, a fenômenos que a ciência, como tal, fosse capaz de explicar pelas leis até então conhecidas. Pois não é que esses elementos de elevada categoria terminam dando parecer favorável a sobrenaturalidade das ocorrências em Juazeiro? (p. 314)
Diante do exposto, a pergunta que um leitor ou estudioso não preconceituoso vê-se inevitavelmente compelido a fazer é a seguinte: seria possível que dois sacerdotes tão ilustrados e de vida santa tivessem se enganado ou sido enganados? Se tivesse havido algum embuste, não teriam sido eles os primeiros, em razão de sua inquestionável competência, a percebê-lo? E tendo-o percebido, não o denunciariam de imediato ao
bispo? E há ainda o testemunho de homens de ciência para dar uma credibilidade ainda maior. Logo, é imperioso concluir que de fato tenha ocorrido em Juazeiro algo de extraordinário, uma verdadeira irrupção do divino na cidade onde “o trabalho honesto, a ordem, a boa alegria de viver são notas salientes e características.” (Pe. Azarias, p. 385)
Tendo ido uma vez ao sul do Ceará em visita pastoral, Dom Joaquim, parco na distribuição de elogios a quem quer que fosse, “trouxera do padre Cícero impressão tão confortadora que, em manifesto divulgado pela imprensa, assim se expressou de regresso a Fortaleza: “A virtude do padre Cícero enche todo o vale do Cariri.” Do mesmo bispo são ainda as seguintes palavras: “Primeiro que tudo declaramos que reconhecemos na pessoa do reverendo Cícero Romão um sacerdote de costumes puros, zeloso e em extremo dedicado a santa Religião, incapaz de qualquer embuste ou de pretender enganar a quem quer que seja.” (p. 309)
Testemunho não menos insuspeito foi o daquele que viria a ser o primeiro bispo do Crato, Dom Quintino Rodrigues, a quem o Padre Cícero sempre dedicou uma grande afeição e respeito. Seu futuro superior hierárquico, que aliás também não era homem dado a tributar louvores a ninguém, conhecendo a vida pura e zelosa que seu colega de batina levava em Juazeiro, não hesitou em se referir a ele como “autêntico mestre em Israel”, que assim se pode traduzir: santo sacerdote da Igreja. À palavra mais que autorizada de Dom Quintino, outras tantas poderiam aqui ser acrescentadas e se abstenho-me de citá-las não é por falta de vontade, mas para não me alongar em demasia.
É de se crer que um homem com todas estas qualidades nem seria enganado por ilusões diabólicas nem tampouco participaria de algo que pudesse soar como desrespeitoso à religião que professava.
Acrescente-se a isto que pela elevada reputação de santidade que padre Cícero então desfrutava à época em que se deram os fatos, pela sua incondicional adesão a doutrina da Igreja e sobretudo por sua obediência irrestrita, seria impossível que ele tomasse parte em uma farsa.
colaborador : Dom Samuel Dantas, OSB
Dom Samuel(Émerson Dantas de Araújo), é natural de Mauriti- Ce. Monge professo solene de votos perpétuos do Mosteiro de São Bento da Bahia, Salvador. É licenciado em Filosofia e Bacharelado em Teologia pela antiga faculdade de São Bento da Bahia e mestre em Filosofia pela UFBA(universidade Federal da Bahia)
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