O QUE OS LÁBIOS DIZEM E OS OLHOS REVELAM NA CIVILIZAÇÃO DO ESPETÁCULO.
Há em nós, seres humanos, uma ferramenta de dimensões bem módicas, com potencial, porém, para causar grandes estragos, e da qual com muita frequência nos servimos em nosso cotidiano para as vezes enganar aos outros e em certa medida a nós também: a boca.
Ensinou-nos o apóstolo Tiago que “a língua é um membro pequeno e gaba-se de grandes feitos. Vêde como é preciso pouco fogo para pôr em chamas uma floresta inteira. A língua também é um fogo; o mundo do mal e mancha o corpo inteiro. Abrasa o ciclo da natureza, sendo ela mesma abrasada pelo inferno, flagelo que não para, cheio de veneno mortal.” (Tg 3, 5 – 8)
A mesma boca que fala do amor de Deus denigre sem piedade a reputação do próximo a quem Deus nos ordenou amar; da mesma boca da qual saem palavras suaves enquanto se está no recinto sagrado brotam também torrentes amargas e venenosas; da mesma boca da qual saem rios de louvor na Igreja ou em qualquer lugar, dela mesma brotam copiosamente jatos irônicos e maledicentes acerca da conduta alheia. Mas este pequeno, irrequieto e quase indomável demônio que quase todos os mortais com raríssimas exceções usam aqui e ali para esculhambar os outros e nunca a si mesmos tem bem acima de si no corpo humano um como que inimigo implacável, alguém que sempre a desmente, quando qualquer pessoa tenta(sem nunca conseguir!) usá-la para passar aos seus semelhantes uma impressão que não corresponde a sua verdade íntima: os olhos!
Se a boca fosse capaz de odiar, odiaria certamente os olhos, pois são eles que habitualmente gritam em silêncio aos outros: ela mente! São eles que dizem aos outros sem que seja necessário pronunciar uma única palavra: olha bem para nós e verás que o que sai desta boca não é verdadeiro nem muito menos sincero. Quem mente – a boca – é via de regra desmentida pelos olhos.
Queres saber o que há dentro de alguém? Não ouças tanto o que sai de sua boca, mas presta atenção no que está visivelmente estampado nos seus olhos, que nunca mentem. Olha bem para o que os poetas acertadamente chamaram o espelho da alma e neles verás o que no íntimo existe.
“A boca mente, sentenciou sabiamente o grande poeta Português Camões; os olhos não!
É um verdadeiro espetáculo tragicômico, para dizer o mínimo, ver alguém falando de alegria com um olhar sombrio ou de amor com os olhos devorados pelo fogo da cólera ou da raiva. Em qualquer lugar, em qualquer circunstância, não há como encobrir nem dissimular com sorriso postiço o que os olhos claramente revelam. Eles nos atraiçoam sempre que tentamos dissimular o que nos vai na alma! E há também a vida que se leva, a qual é ainda mais reveladora do que os próprios olhos. Quando efetivamente, ao que os olhos revelam se junta a própria vida, o espetáculo é ainda mais desolador e a pobre boca, juntamente com seu dono(a), fica completamente desmoralizada!
Talvez nem sempre percebamos, mas sempre que para não passarmos por desgraçados ou infelizes aos olhos de terceiros em certas ocasiões quando internamente choramos, tentamos com a boca dizer que tudo está bem, que estamos em paz, que somos felizes, boca e olhos entram em um inevitável conflito, em que, apesar dos agigantados esforços feitos pela boca, os olhos sempre acabam por triunfar. Enquanto com a boca nos esforçamos para mascarar o que sentimos, e ocultar a nossa real situação interna, os olhos, sempre sinceros e verdadeiros, sem dizer uma única palavra, revelam tudo.
E se os olhos desmentem o que a boca diz, a vida vem em muitos casos para revelar ao vivo e a cores a falsidade completa da triste representação teatral, incapaz de convencer até os que não tem habilidade de ler nas entrelinhas.
Poucas coisas neste mundo são tão desagradáveis de se ver quanto uma boca falar de alegria e um olhar transpirar tristeza, ou uma boca falar de amor a Deus e ao próximo enquanto que no olhar se vê e lê coisa bem diferente!
Certo jornalista inglês escreveu em um dos seus livros a respeito da eleição de certo papa o seguinte: “É as vezes cômico ouvir o papa...começar um sermão dizendo-se cheio de alegria por uma coisa ou outra, com uma pungente expressão de tristeza, angústia e dor estampada no rosto.”
Enfim, se com os lábios tentamos enganar aos outros acerca de nossa real situação num dado momento de nossa vida, eis que nossos olhos e nossa face nos desmentem. E em certos casos mais notórios, quando o indivíduo, por força do ofício
social que ocupa vê-se obrigado a falar em público num daqueles dias em que não dizer nada seria melhor do que mentir, o pobre corpo berra, desmentindo também ele solenemente o que jorra dos lábios, e dizendo aqueles com quem se fala ou para os quais se fala, que a mentira está na boca e a verdade nos olhos!
Diga-se todavia, a bem da verdade, que é um espetáculo magnífico, deslumbrante como um lindo alvorecer de primavera, quando olhos transbordantes de bondade confirmam palavras bondosas, quando os olhos repletos de um puro, fino e delicado amor verdadeiro nos dizem eloquentemente que as palavras saídas de certos lábios, que graças a Deus ainda existem, não são meras palavras lançadas ao vento.
colaborador : Dom Samuel Dantas, OSB
Dom Samuel(Émerson Dantas de Araújo), é natural de Mauriti- Ce. Monge professo solene de votos perpétuos do Mosteiro de São Bento da Bahia, Salvador. É licenciado em Filosofia e Bacharelado em Teologia pela antiga faculdade de São Bento da Bahia e mestre em Filosofia pela UFBA(universidade Federal da Bahia)
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