quarta-feira, 24 de agosto de 2022

"O tempo do Vaticano é diferente do tempo leigo" Lira Neto

 

Lira Neto, sobre possível beatificação de Padre Cícero: "O tempo do Vaticano é diferente do tempo leigo"

Jornalista e escritor cearense publicou biografia do Padim Ciço em 2009, após 10 anos de pesquisa. Diocese do Crato anunciou abertura do processo de beatificação do Santo Padre
Lira Neto é autor da biografia "Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão"(foto: ARQUIVO)

A relação do jornalista e escritor Lira Neto com Padre Cícero foi muito além de terem nascido no mesmo Estado brasileiro, o Ceará. O autor, em 2009, escreveu a biografia “Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão”, pela Companhia das Letras, que foi pesquisado durante dez anos, antes de se materializar em literatura.

Segundo o próprio autor, apesar de não ser um homem religioso, nem dado a acreditar em santos ou milagres, depois que conheceu a história do possível santo, ícone religioso do Cariri, passou a “respeitar as crenças e os saberes da gente simples do Sertão”.

Todas as contradições e as polêmicas que percorreram desde o nascimento de Cícero Romão Batista, em 24 de março de 1844, no Crato — importante ressaltar pela disputa com a cidade vizinha, Juazeiro do Norte, onde se fez conhecido —, até o dia de sua partida, 20 de julho de 1934, são o que mais encanta o escritor. Ao O POVO, direto de Portugal, onde reside, o jornalista analisa os contextos do processo do Vaticano de dar “perdão” ao religioso e agora avançar em transformá-lo em beato.

O POVO - O Vaticano deu início à beatificação de Padre Cícero e isso foi anunciado hoje, 20 de agosto, em Juazeiro do Norte. Como o senhor analisa essa notícia?

Lira Neto - O processo de beatificação de Padre Cícero teve início há duas décadas, desde 2001, quando o então cardeal Joseph Ratzinger, que depois viria a ser o papa Bento XVI, enviou à Nunciatura Apostólica no Brasil uma carta em caráter reservado, mostrando-se favorável à possível reabilitação canônica do sacerdote que morreu proscrito pela igreja. Como pano de fundo, havia a preocupação do Vaticano com o avanço das igrejas neopentecostais no País. Diante da sangria no número de fiéis, era contraproducente, na perspectiva da Igreja, deixar à margem do rito a devoção popular a um padre que é considerado, por milhões de fiéis, um homem santo. Acontece que o tempo de Roma é diferente do tempo leigo. Foram necessários cerca de 20 anos para que tudo tramitasse e chegasse a este momento.

O POVO - De que forma destacaria a vida dele e atividades no Cariri?

Lira Neto - Padre Cícero era dono de um magnetismo pessoal extraordinário. Sendo ele próprio um sertanejo, sabia falar a língua do povo e tocar a alma de seus fiéis de forma singular, com absolutasensibilidade e conhecimento de causa. Era um homem contraditório, com qualidades e defeitos, mas que foi condenado pela Igreja após um processo eclesiástico eivado de flagrantes etnocentrismos. As autoridades do Clero não queriam admitir a hipótese de um milagre eucarístico, a suposta transformação da hóstia em sangue na boca da beata Maria de Araújo, ter ocorrido no sertão do Ceará, entre uma gente simples, cabocla, sem instrução. Enquanto outros presumidos milagres eucarísticos ocorridos na Europa foram validados pela Santa Sé, os acusadores de Padre Cicero declararam-no culpado antes mesmo da investigação.

O POVO - Padre Cícero sempre foi uma pessoa politizada. Como analisa esse viés na personalidade dele? E o que contribui e o que atrapalhou em relação à igreja?

Lira Neto - Padre Cícero começou a se envolver na política com maior intensidade após sua condenação eclesiástica. A essa altura, ele já detinha um imenso capital social, decorrente de sua prática pastoral. Sua primeira grande campanha política foi pela emancipação de Juazeiro (do Norte) em relação ao Crato. Muitos até hoje ainda têm Cícero Romão Batista na conta de um padre de aldeia caricato, mas a verdade é que em seus documentos existem diversas correspondências entre ele e o Palácio do Catete, então sede da Presidência da República.

Era um homem articuladíssimo em termos políticos, embora mantivesse um diálogo permanente, em linguagem simples, com seus devotos, a quem tratava por “amiguinhos”.

O POVO - Também foi uma personalidade polêmica na região e no Ceará. Como vê isso?

Lira Neto - Este é o aspecto que mais me fascina em Padre Cícero. Suas inúmeras contradições. Antes de biografá-lo, eu próprio, nascido no litoral e no meio urbano, compartilhava dos muitos preconceitos, inclusive acadêmicos, que existem a respeito de sua trajetória. Precisei fazer uma espécie de mergulho etnográfico no universo dos romeiros para entender o significado e a visceralidade da fé sertaneja. Não sou um homem religioso, não sou dado a acreditar em santos ou milagres, mas depois de escrever a biografia de Padre Cícero passei a respeitar as crenças e saberes da gente simples do Sertão. Como diz a música de Caetano Veloso, inspirada em Jorge Amado: “Quem é ateu e viu milagres como eu...”.

O POVO - Quais passagens de sua vida destacaria?

Lira Neto - A vida de Padre Cícero é, toda ela, arrebatadora, com episódios que beiram o quase inacreditável. Costumo dizer que nem Gabriel García Márquez, o maior expoente do realismo mágico, mesmo sob a hipotética influência de algum alucinógeno, não conseguiria conceber uma narrativa tão prodigiosa. Isso me levou a pedir emprestado ao jornalista Gay Talese, um dos maiores escritores de não ficção de todos os tempos, a epígrafe que escolhi para a biografia Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão: “Há muito acredito que o realismo é fantástico”.

O POVO - Padre Cícero passa a ser o terceiro cearense reconhecido pelo Vaticano pela beatificação. O que isso representa para o Ceará na questão religiosa?

Lira Neto - Penso que não podemos perder de vista que há uma espécie de “guerra santa” sendo travada nos bastidores de tais reconhecimentos canônicos. O ex-bispo do Crato, Fernando Panico, chegou a dizer numa entrevista ao New York Times que Padre Cícero seria “um antivírus contra os evangélicos”.

O POVO - O que pode detalhar sobre o afastamento dele da igreja e o perdão concedido em 2015?

Lira Neto - O perdão, a reabilitação e agora o início do processo de beatificação obedecem a uma lógica da Igreja Católica de rever suas posições e atitudes do passado, muitas vezes lastreadas na intolerância em relação ao outro, ao diferente, ao dissonante, visto como um herege que deveria ser punido, execrado, queimado na fogueira. Certa vez ouvi de uma romeira: “Não é Padre Cícero que precisa ser perdoado pela Igreja; é a Igreja que precisa pedir perdão a Padre Cícero”.

O POVO - O que gostaria de acrescentar?

Lira Neto - Duas coisas, talvez. A primeira é de que o processo de beatificação de Padre Cícero não pode correr dissociado da recuperação da imagem da beata Maria de Araújo. Ela é que foi a verdadeira protagonista dos chamados “milagres de Juazeiro”. Por ser pobre, negra e analfabeta, acabou sendo o elo mais fraco, a ponto de não ter tido sequer direito a um túmulo. Seus ossos, roubados por ordens da Igreja, sumiram para sempre. Uma violência inominável. O Vaticano deve desculpas, sim, urgentes, a Maria de Araújo. A outra observação é de que nunca me ocorreu querer discutir a veracidade dos supostos milagres de Juazeiro. Isso não me interessa como pesquisador da história. Parece-me muito mais pertinente tentar entender as consequências e desdobramentos históricos de tais fenômenos, sejam eles reais ou não, ou seja, buscar compreender o processo de canonização popular de Padre Cícero como santo do povo, a centralidade de Juazeiro do Norte como a Jerusalém sertaneja.


Leia mais em: https://www.opovo.com.br/noticias/ceara/2022/08/20/lira-neto-sobre-possivel-beatificacao-de-padre-cicero-o-tempo-do-vaticano-e-diferente-do-tempo-leigo.html
©2022 Todos os direitos são reservados ao Portal O POVO, conforme a Lei nº 9.610/98. 













Nenhum comentário: