DA HISTÓRIA DE JUAZEIRO : O ADMIRÁVEL DR. MOZART
Nasci e cresci ouvindo falar de Dr. Mozart Cardoso de Alencar como um homem verdadeiramente admirável. Ele era um tipo especial de pessoa que a todos impressionava pela capacidade de empregar engenho e arte em diversas atividades.
Na vida profissional, foi o médico que seus colegas, de um modo geral, gostariam de ser. Parecia ter um sexto sentido que o levava direto à etiologia dos males mais complexos, permitindo-lhe alcançar os melhores resultados no tratamento aplicado. Em conseqüência de um trabalho assaz competente, realizado com acendrada paixão, conquistou formidável fama. Numa época em que a medicina estava longe de contar com o auxílio da análise clínica aprimorada; dos aparelhos de ultra-som, tomografias, endoscopias e outros recursos tecnológicos, na identificação das patologias, ele utilizava os meios mais simples para chegar aos infalíveis diagnósticos que o tornaram célebre.
Tinha um ouvido acutíssimo, que detectava com facilidade as afeções do peito – mediante a pronúncia repetida de "trinta e três" pelo paciente –, bem como as mais discretas arritmias do coração. Usava tubos de ensaio para o exame da urina, colhida no próprio consultório e, ali mesmo, na presença do doente, acendia um pavio com que esquentava o fundo do vaso cilíndrico e já lhe dizia se estava ou não perdendo albumina. Além disso, sentado à escrivaninha, frente a frente com o cliente, abria um vade-mécum bastante volumoso e lia em voz alta o conteúdo do livro na parte em que lhe parecia enquadrar-se o caso sob exame, comentando a seguir os motivos de seu entendimento.
Esses fatos, que testemunhei algumas vezes, dizem bem da extrema dedicação do médico da família juazeirense – como o intitulou Dr. Geraldo Barbosa – à nobre profissão que abraçara. Por desempenhar o ofício de forma responsável, com sabedoria, entusiasmo e intuição, na ânsia contínua de tratar dos doentes e debelar com urgência os males que ameaçavam a coletividade, às vezes Dr. Mozart chocava pessoas do povo, ao alertar quanto ao perigo de estarem acometidas de moléstias contagiosas graves, recomendando sempre providência imediata.
Foi o que aconteceu a certo senhor que se encontrava à porta de casa quando ele, passando casualmente pela calçada, ao voltar a vista para cumprimentar o tal homem, parou de súbito e exclamou: "Ih! meu velho, você está com lepra!" Assustado e sentindo-se agredido, o dito senhor e também uma filha deste que assomava à porta, por demais irritados com o que ouviram, contestaram o médico de forma veemente e até desrespeitosa. Dizem que ela insinuou que o doutor não sabia de nada e era quem podia estar com a doença. Aí ouviu, de pronto, a mesma diagnose fatídica: "Você também está leprosa e precisa cuidar-se antes que seja tarde!"... Evidentemente, tudo se confirmou em seguida.
Episódios como esse eram repetidamente narrados no dia-a-dia de nossa cidade; daí porque ninguém jamais esqueceu o fiel discípulo de Hipócrates que Juazeiro teve a felicidade e o privilégio de abrigar durante 65 anos, como um dos mais úteis, admirados e respeitados munícipes de toda a sua história. Aliás, foi também em seu consultório onde li pela primeira vez o famoso juramento do Papa da Medicina, na Antigüidade, que ele tinha o prazer de estampar na parede, juramento esse que constitui o supra-sumo da ética profissional, na área de sua atuação. Traduzido da literatura clássica, decerto o embevecia pela substância e pela forma, haja vista ainda os seus pendores literários.
Além de pontificar brilhantemente no mais alto escalão da área de saúde, teve, como o ser social por excelência que era, uma presença muito marcante na vida comunitária em geral. Dotado de magníficos dons artísticos lítero-musicais, produziu poemas líricos admiráveis e atraía todas as atenções para si quando dava vazão ao gênio criativo. Dependendo da ocasião, ora fazia versos de improviso picantes, satíricos e para todos os gostos , ora cantava afinado, com voz de tenor ou discursava com sua oratória vibrante e facunda. Era sempre interessante e agradável ouvir e ver Dr. Mozart em ação nas solenidades cívicas e sociais.
Quando conversava e tratava de questões que exigissem conhecimentos técnico-científicos do campo médico, fazia-o demonstrando total segurança, com a mesma desenvoltura com que falava de outros temas comuns, em termos próprios e atualizados. Na prosa e na lorota, saísse de perto, porque não tinha quem agüentasse. Ele, sempre muito espirituoso, dizia as coisas mais gozadas e já deflagrava uma gargalhada gostosa e contagiante, levando todos a rir sem poder parar. E, quando havia entre os circunstantes uma pessoa também brincalhona, capaz de animar a conversa com inteligência, aí a coisa ia longe...
No palco da sociedade juazeirense, a partir de sua chegada à Terra do Padre Cícero até à cassação de seu mandato de prefeito, em 1975, quando experimentou o gosto amargo da traição, figurou entre os protagonistas de todos os grandes acontecimentos políticos e sociais que abalaram a Cidade. Eram ele e seu amigo e correligionário, o antigo Promotor de Justiça Dr. Edward Teixeira Férrer, duas figuras fantásticas; tão díspares em certo sentido, mas tão semelhantes na arte de despertar as emoções do povo!... Em memoráveis campanhas políticas, vitoriosas ou não, sempre deixavam a marca de uma atuação corajosa e firme, na defesa e no ataque, com arrebatamentos e paixões na base, de lado a lado. Mozart não temia o mais ferrenho adversário: Feitosa (Dr. Antônio Conserva Feitosa), nem este temia Mozart. E era isso que tornava as disputas mais tensas e preocupantes.
Ainda ouço o toque-toque dos cacetes dos "carrapatos" de Feitosa, comemorando a vitória que tiveram sobre Dr. Mozart, apoiando José Monteiro de Macedo nas eleições municipais de 1950. Fechamos todas as portas e janelas de casa e nos mantivemos calados e com medo, lá dentro, no meio da sala de jantar, porque houve uma passeata à noite, percorrendo nossa rua (Pe. Cícero, nº 196), só comparável aos arrastões dos malfeitores de hoje, nas praias do Rio. A par disso ainda havia o reboar das bombas estouradas defronte das residências dos derrotados, que elevava a muitos graus o clima de terror. Ai do udenista que ousasse expor-se à sanha dos mazorqueiros... Tal a impressão de assombro gravada em nosso espírito.
E eu fiquei perguntando-me, nos meus quase seis anos de idade, como aquilo poderia ter acontecido, se cantávamos tão eufóricos: "Os contrários estão contentes, pensando que vão ganhar, mas aqui na prefeitura ficará Dr. Mozart". Era uma paródia à música de Luiz Gonzaga, que dizia assim: "Ai Quixabeira, Quixabeira do meu Assaré"... Mais tarde, em 54, dar-lhes-íamos o troco com Zé Geraldo.
Foi a época da campanha política mais animada e mais sensacional a que assisti, quando fizemos do chapéu de palha o símbolo de nossa resistência. Era bonito ver a multidão na praça, diante da Farmácia dos Pobres ou nos comícios, com aquele chapeuzinho na cabeça, em que se lia "gogó", escrito com tinta a óleo preta, na parte frontal, acima da aba e/ou na própria aba. Certo dia, no decorrer dessa mesma campanha, Milton Sobreira e Humberto Alencar apareceram lá em casa com uma folha de cartolina e um livro com a gravura de uma cutia. Colocaram a cartolina sobre a mesa e desenharam nela um animal bem grande, igualzinho ao do livro. Depois o recortaram e fizeram dele um estandarte para exibir nos comício da UDN e do PTB, então coligados.
É que o candidato adversário, Dr. Feitosa, que pertencia ao PSD, era apelidado de Cutia... Muita gente ainda deve lembrar-se daquele cartaz tremulando nas concentrações populares dos eleitores de Zé Geraldo e Zé Monteiro "para o bem de Juazeiro". Dessa vez, Zé Monteiro concorria à Assembléia Legislativa e estava de nosso lado. Doutra feita, levaram ao comício uma melancia enorme pintada de branco, colocada sobre palhas, simulando um ninho, para dizerem que era o ovo posto pelo concorrente. Fazia-se, assim, uma associação de idéias com a quadra estapafúrdia, segundo a qual: "Armando fez o ninho, Feitosa pôs um ovo, Almino tá chocando pra tirar um pinto novo". Armando (Falcão) era o candidato adversário ao Governo do Estado e Almino (Loiola) a deputado estadual, também apoiado por Dr. Feitosa.
Nem precisa dizer que Mozart e Edward eram figuras de proa da campanha vitoriosa daquele ano tão remoto e tão presente. Mais adiante, já nos anos setenta, Dr. Mozart afinal se elegeu prefeito, com o apoio dos Bezerra; mas, com menos de dois anos no exercício do cargo, teceu-se uma intriga a mais desarrazoada, que culminou com a cassação de seu mandato. A propósito, isso não constituiu surpresa para mim, posto que, atento a um discurso do candidato Mozart, nos idos de 73, em comício realizado na praça Dirceu Figueriedo, lembra perfeitamente ter ouvido dele a afirmação incisiva de que, uma vez à frente da Prefeitura, não precisava da orientação de quem quer que fosse para administrar Juazeiro, posto que, como todo mundo sabia, era um homem bastante inteligente e capaz...
O motivo dessa assertiva vinha do fato de se dizer que o ex-prefeito Humberto Bezerra – que havia feito uma boa administração –, iria orientar o candidato à sucessão, pela ARENA, a realizar também um bom trabalho. Era só um argumento dos correligionários para rebater crítica do outro lado, segundo a qual ele não tinha experiência administrativa. Ora, isso lhe feria, evidentemente, a vaidade e os brios de cidadão cônscio dos seus direitos, deveres e responsabilidades... Ao testemunhar o episódio, comentei na hora – premonitoriamente – com minha mulher, Iane, que a eleição de Dr. Mozart não iria dar certo...
No atendimento à clientela, Dr. Mozart, sempre bem-humorado, não perdia a oportunidade de quebrar o pessimismo reinante no ambiente e fazer com que se elevasse o ânimo da pessoa enferma e de seus familiares. Era só lançar mão dos recursos naturais da veia poética e da capacidade criativa e dizer um repente adequado a cada situação, e logo mudava o quadro soturno. Certa vez, em visita domiciliar a meu sogro: Sr. Januário Alves Feitosa (Av. Dr. Floro, n. 390), que se encontrava bastante doente, ao passar pela cozinha viu que se esganava uma "penosa" e saiu com esta: "Oh! que cheiro na cozinha do Ginu/Todo dia mata galinha, só não vejo matar peru."
Assim era em todas as ocasiões, mormente quando se comemorava algum acontecimento que mexia com a massa popular, como num dia de 1960 em que houve uma passeata de desagravo a Neyr Sobreira, miss Juazeiro, que acabava de voltar de Fortaleza, onde concorrera ao título de miss Ceará e fora derrotada, logo pela representante do município vizinho e rival. O despeito era maior porque a loura conterrânea, de longos e lisos cabelos, perdera para uma morena de cabeleira um pouco encaracolada.
Assistindo ao desfile da mais bela juazeirense de então, na confluência das ruas Pe. Cícero e Cruzeiro, quando ela exibia a beleza exuberante em carro aberto, o poeta olhou para mim e comentou em voz alta: "Miss Crato ganhou nesse jogo/A custa de cabelo estirado a ferro e fogo!" Os versos lhe saiam assim, a todo momento, por brincadeira. E muita coisa boa deve ter-se perdido.
Felizmente, com a publicação de "Poemas Escolhidos" em 89 e "Doce de Pimenta" em 94, a maior parte da produção literária de Dr. Mozart, que se encontrava dispersa, foi enfeixada nesses livros para nosso deleite e regalo, graças ao escritor conterrâneo, Raimundo Araújo, que assumiu a tarefa de organizar os trabalhos pertinentes a fim de que fosse trazido a lume o conteúdo rico e variado de uma obra originalíssima, saída de um espírito libérrimo, senhor de si porque consciente do fulgor da própria inteligência , ora lírico, apaixonado; ora gozador, irreverente e mordaz.
Quando, em 30 de dezembro de l988, foi agraciado com a mais alta comenda do município de Juazeiro: "Medalha de Honra ao Mérito Padre Cícero", Dr. Mozart pronunciou longo discurso, em que contou toda a história de sua vida e aí, ao falar do que essa terra lhe havia proporcionado em termos de integração social plena, sobremodo satisfatória, em meio a boas e caras amizades, citou nominalmente 45 (quarenta e cinco) pessoas com quem nela convivera em saudável harmonia. Fiquei orgulhoso ao ver que começava assim a passagem aqui referida: "Ao longo de minha vivência nesta cidade, onde cheguei no dia 10 de outubro de 1931, constituí um sem-número de amigos. Dentre eles, os sempre lembrados: José Geraldo da Cruz, Cel. Francisco Néri da Costa Morato..." (meu pai), seguindo-se os demais nomes; primeiro os de saudosa memória, depois dos que ainda viviam.
Foi por isso que, em dias de 1956, quando corria na rua, defronte de casa, brincando com a meninada numa noite calma e fui chamado de repente por minha mãe, muito aflita, que me ordenou ir depressa atrás de Dr. Mozart, porque meu pai havia urinado sangue, ao sair em disparada rumo à sua residência – indo encontrá-lo noutra casa próxima, jogando baralho –, mal lhe dei o recado, em poucos minutos, estava ele à cabeceira do velho amigo, examinando-o e prescrevendo medicação de urgência, para voltar no dia seguinte, logo de manhã, fazer um exame mais acurado e dar o diagnóstico.
Nos bons tempos de sua mocidade – primeiros anos da década de 30 –, ainda a propósito desse relacionamento amistoso, incluiu meu pai no primeiro testamento de Judas Iscariotes, de que se fez escrivão: "Ao senhor coronel Nery/Vinte contos vou deixar/P'ra no Rio de Janeiro/Ir dos olhos se operar/Mas não passe no Recife,/Se esconda do Salazar/Que operou o Padre Cícero/Somente para ganhar.../O Padre gastou demais/E morreu sem enxergar". Já a respeito de meu irmão mais velho disse assim: "Zé Néri – o incompreendido – /Vou lhe chamar a atenção:/Depois que eu for enforcado/Não queira mais discussão;/Discuti com os fariseus,/Resultou-me esta prisão./Portanto não mais discuta/Nem teime sem ter razão/Que o prêmio de quem discute/É forca, meu caro irmão."
Aí por volta de 1964 ou 65, adoeci e fui reiteradas vezes ao seu consultório, quando recebi um tratamento muito atencioso e cordial. Ao recomendar que viesse a Fortaleza, adiantou-me haver aqui um médico muito bom, seu amigo particular com quem trabalhara no Crato, ainda na década de trinta, durante o surto da peste bubônica, e até escreveu a esse seu colega, que era o Dr. Mário de Assis, solicitando examinar o meu caso com maior cuidado, por ser filho de pessoa de sua estima.
Por tudo isso, quando me pediu que falasse a mamãe de seu interesse na aquisição de um terreno de propriedade dela, que se iniciava naquele beco que era a continuação da Rua Padre Cícero (logo atrás da Rua do Brejo, em frente à Igreja de N.Sra. das Dores e ia até o Rio Salgadinho, vizinho aos herdeiros do Sr. José Xandu), não tive dúvida em usar toda a minha influência para que o negócio se realizasse, o que não foi nada fácil devido a uma recomendação de meu pai para que ela nunca se desfizesse de bens de raiz. No entanto, como o doutor havia manifestado o desejo de montar ali uma vacaria, coisa muito de seu agrado, houve um consenso em família para atender ao médico amigo, mais como um preito de gratidão, e o negócio se concretizou. Foi bom ver que ele pôde realizar aquele desejo, embora, tempos depois, tenha sido o citado imóvel objeto de desapropriação pelo poder público municipal.
Agora o Prof. Expedito Cornélio me transmite um recado de seu filho Daltro, que, pretendendo editar um livro sobre a vida e a obra do legendário pai, Dr. Mozart, solicita minhas impressões acerca do médico e poeta barbalhense que, literalmente, enterrou o coração em Juazeiro do Padre Cícero.
Devo dizer que participo das homenagens com enorme satisfação, porque sempre admirei imensamente esse homem extraordinário e tive por ele o maior apreço. Se não bastasse isso, três de seus filhos: Teive, Dante e Guálter, que têm idade próxima à minha, são meus amigos e com eles convivi na infância e na adolescência – a maior parte do tempo, na Praça Padre Cícero e no bosque das peladas futebolísticas de quase todo dia –, em clima de mútua cordialidade. Com o primeiro e com o último foi maior aproximação dado que moramos juntos no Fortaleza Hotel, em nosso tempo de estudantes. Deixo, pois, aqui, um forte abraço a todos que têm o justo orgulho e a honra de pertencer a essa gloriosa descendência.
Fortaleza (CE), 25 de abril de 2001
Francisco Néri Filho
N. A.. Como o livro a que se destinou este trabalho não foi editado no centenário de nascimento do homenageado, em 2003, conf. estava previsto, sentimo-nos liberado a levá-lo a público, o que fazemos agora, em sinal de gratidão ao admirável Dr. Mozart Cardoso de Alencar.
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