REVISITANDO NOSSO ARQUIVO DA HISTÓRIA por Daniel Walker
Até hoje não é possível afirmar com absoluta segurança quem foi realmente que deu a ordem para destruição do túmulo da beata Maria de Araújo, construído no interior da Capela do Socorro, em Juazeiro do Norte. Muitos escritores afirmaram que a ordem teria sido dada pelo bispo do Crato, Dom Francisco de Assis Pires, mas isso não é verdade, como veremos mais adiante. Um documento registrado em cartório afirma que a ordem partiu do vigário de Juazeiro da época, no caso Monsenhor José Alves de Lima. E aí vem a pergunta: o vigário de Juazeiro teria poderes para tal?
Vamos analisar as duas questões.
1. Por que não foi Dom Francisco?
D. Quintino e D. Francisco |
Explicação: A destruição do túmulo ocorreu no dia 22 de outubro de 1930. Porém, naquela data, conforme explica a própria Diocese, a mesma estava vacante. Ou seja, estava sem titular, uma vez que Dom Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva (Foto 1), seu primeiro bispo, havia falecido em 29 de dezembro de 1929 e o segundo Bispo de Crato, Dom Francisco de Assis Pires (Foto 2), só foi nomeado em 11 de agosto de 1931, tendo chegado ao Cariri somente em 10 de janeiro de 1932. Assim, seguramente, com base na cronologia, não partiu de nenhum bispo da Diocese de Crato a ordem para violação do túmulo da Beata.
Mons. Sóter e Armando |
Enquanto durou a vacância na Diocese do Crato, respondia, como administrador diocesano, Monsenhor Vicente Sóter de Alencar, que era o Vigário-Geral da Diocese. Teria ele poderes para autorizar uma coisa de tamanha responsabilidade? Segundo nos informou o historiador Armando Rafael, chanceler da Diocese do Crato, “pelo Direito Canônico, o Administrador Diocesano não pode, sequer, nomear ou demitir ninguém da equipe anterior, ou – enquanto aguarda a chegada do novo bispo – fazer qualquer modificação na Diocese. O Administrador Diocesano tem poderes limitadíssimos. Eis o que reza o Direito Canônico:
“Cân. 428 – Parágrafo 1. Durante a sé vacante, nada se modifique.
Parágrafo 2. Os que cuidam do governo interino da diocese são proibidos de fazer qualquer coisa que possa de algum modo prejudicar a diocese ou os direitos episcopais; em particular são proibidos eles próprios, e por isso qualquer outro, por si ou por outros de retirar ou destruir documentos da cúria diocesana ou neles modificar qualquer coisa”.
Conforme ainda Armando “Monsenhor Vicente Sóter de Alencar, além de ser um sacerdote culto, equilibrado, bem informado e com fama de santidade, era grande amigo de Padre Cícero. É difícil que fosse autorizar uma coisa de tal envergadura, que feria os foros de civilização e normas do Direito Civil, além de causar profundo transtorno à veneranda figura do seu amigo, o Patriarca de Juazeiro”.
2. Resta, então, a possibilidade de ter sido Monsenhor José Alves de Lima, a qual será agora analisada.
Mons. Lima e Amália |
Explicação: Diz Amália Xavier de Oliveira, em seu livro O Padre Cícero que eu conheci, que “o então vigário de Juazeiro, Monsenhor José Alves de Lima, desejando preparar a Capela do Socorro para ser benta pelo sucessor de D. Quintino, mandou derribar o túmulo (da beata) para deixar igual todo o piso” E diz mais: “Os restos mortais estavam desfeitos no caixão e caíram no depósito que foi logo encerrado”
Pe. Cícero e a beata |
Padre Cicero tinha pela beata Maria de Araújo uma particular consideração, razão por que, quando ela morreu, lhe dedicou uma atenção especial. Mandou abrir-lhe a sepultura no interior da Capela do Socorro e providenciou-lhe um enterro digno de uma pessoa ilustre. Foi realmente um grande e inesquecível cortejo.
Ela morreu no dia 17 de janeiro de 1914, quando estava em curso o movimento sedicioso de Juazeiro, mais conhecido como Revolução de 1914. Um curioso documento particular, registrado em 3 de dezembro de 1930, no Cartório Machado, com o longo título de "NESTE VIDRO DEVIDAMENTE LACRADO SE ACHA TUDO QUE ENCONTROU-SE NOS DESPOJOS MORTAIS DA BEATA MARIA DE ARAÚJO, QUANDO EM 22.10.1930 FOI O SEU TÚMULO ABERTO CLANDESTINAMENTE POR ORDEM DO REVMO. VIGÁRIO DESTA CIDADE MONSENHOR JOSÉ ALVES DE LIMA" diz que o "corpo da beata Maria de Araújo foi trajado no hábito da Ordem Terceira de São Francisco, e foi depositado e trancado a chave em um ataúde de cedro devidamente envernizado a óleo por dentro e por fora e sepultado na Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, conjunta ao cemitério público, no dia 18 do mesmo mês e ano, sendo acompanhado de grande multidão de pessoas, entre as quais se destacavam o Padre Cicero e importantes vultos políticos do Estado, que se achavam refugiados no Juazeiro". O mesmo documento informa mais adiante que em 22 de outubro de 1930, abriram o túmulo de alvenaria onde estava sepultada Maria de Araújo, e os encarregados do serviço asseveraram que não existiam dentro do túmulo os restos mortais da mesma. A violação do túmulo foi de surpresa, sem preceder autorização legal, sem conhecimento, sequer, do respectivo zelador do cemitério, o senhor Hildebrando Oliveira. Sabendo o Padre Cicero que se estava arrasando o referido túmulo, chamou, rapidamente, ao atual governador da cidade, o farmacêutico Jose Geraldo da Cruz, para conjuntamente com o fotógrafo João Candido e Fontes assistirem ao ato exumatório e mandarem recolher os restos mortais em outro túmulo no cemitério. Esses senhores, sem perda de tempo, foram ao local, encontrando já aberta a sepultura, de momentos. Informou-os o pedreiro de que só existiam ali restos de panos e a madeira do caixão. Examinaram eles o caixão, a sepultura e, também, os escombros atirados para fora onde colheram, apenas, uns escapulários das irmandades de Nossa Senhora das Dores, de Nossa Senhora do Carmo, da Paixão e de outras irmandades e o cordão de São Francisco, e um pedaço de crânio com cabelos, o qual está guardado neste vaso de vidro. A beata Maria de Araújo que em sua vida foi caluniada de toda a sorte, teve ainda depois de morta violado seu tumulo".
Apesar de o evento ter sido testemunhado por um fotógrafo, não existe nenhum registro fotográfico. Agora, é o caso de perguntar: teria mesmo Monsenhor Lima coragem suficiente para assumir tal empreitada? Não existe nenhum documento oficial da Igreja (nada consta no Livro de tombo da Paróquia) ou da Justiça comprovando que ele deu a ordem. Mas o certo mesmo é que alguém mandou destruir o túmulo e o fato se consumou, caracterizando um flagrante abuso de poder, um desrespeito às leis, pois não se faz exumação sem ordem judicial, e um acinte à família da beata, que deveria ter ficado com os restos mortais dela para sepultar em outro túmulo.
Contudo, o mais incrível é esse fato ter acontecido sem que nenhuma manifestação popular tenha sido registrada, nenhuma autoridade judicial ter protestado, afinal, tratava-se de uma inominável afronta a um ser humano, uma mulher humilde, a beata de Juazeiro, enfim, a mulher que juntamente com o Padre Cícero mudou o rumo desta cidade.
Generosa e Fátima |
É possível que nenhuma revolta tenha ocorrido porque, segundo informa a historiadora Generosa Ferreira Alencar, em seu livro Homens e fatos na história do Juazeiro, em coautoria com Fátima Menezes, a violação do túmulo ocorreu enquanto Juazeiro vivia dias agitados, em meio à Revolução de 30, estando a cidade repleta de militares da força federal. Portanto, qualquer levante popular seria facilmente reprimido pela força militar.
Isso alivia, mas não justifica. Será que não foi justamente aproveitando essa circunstância que Monsenhor Lima agiu? Na verdade, diante da consumação do fato Juazeiro foi covarde naquele tempo. Pois, por muito menos, os juazeirenses deram em outras oportunidades demonstração inequívoca de que não toleram injustiças.
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