Os cachos caem sobre a testa, os olhos, e reverberam o movimento do corpo, o vaivém dos braços. E se aquietam enquanto os dedos, livres, acomodam os fios. Sentado em frente ao tear, Alexandre Heberte Mendes de Souza, 44, combina texturas, espessuras, matérias-primas, cores em suas tramas.
O tear, ele diz, é como uma extensão de seu corpo. Que resulta em tecidos mais duros quando está tenso. Mais escuros quando está introspectivo. Leves quando está feliz.
Neste mês, ele concluiu o projeto Trama São Paulo, em que percorreu 33 pontos da cidade, tecendo em locais públicos. No fim, expôs todos os coloridos tecidos na SP-Arte e realizou uma performance —durante os quatro dias do evento, trabalhou, em silêncio e sem parar, em seu tear.
O artista cresceu em Juazeiro do Norte (CE), terra de Padre Cícero, próximo das palhas entrelaçadas, das rendas de bilros, das redes de pesca, sem imaginar que enveredaria 2.643 quilômetros ao sul pela tecelagem.
Filho de uma costureira e um caixeiro viajante, foi o primeiro, dos seis filhos, a estudar em escola particular. Graças ao sucesso da fábrica do pai, de refrigerante de caju.
Aquele pedaço do Cariri, onde não havia anonimato, Heberte deixou para trás duas vezes. A primeira, em 1990, para morar em Fortaleza com o irmão mais velho e trabalhar no brechó da irmã, seis meses depois que os pais souberam que ele era gay.
Os excessos de quem queria curar a timidez com a bebida tornaram as relações familiares insustentáveis. E, por isso, após 11 anos, voltou a Juazeiro, em busca da ajuda dos pais.
E, numa terra de "cabra macho", adorava se montar. Combinar a calça de alfaiataria com blusas femininas e salto alto. "Isso perturbava meus pais", conta. "É alto o preço que se paga por querer descobrir sua representação."
Em 2002, ele, que gravava em fitas desfiles da São Paulo Fashion Week, trouxe à capital paulista uma amiga para um concurso de modelos. "Eu estava na rua São Caetano, olhando pela janela, e entendi que essa cidade me pertencia." Dois anos depois, mudou-se.
"Chego a São Paulo no pior momento da minha vida. Muitos acharam que ia me perder, mas eu estava perdido lá. São Paulo foi meu bálsamo."
Estudou turismo, especializou-se no centro (onde hoje vive), mas foi trabalhar jogando tarô por telefone. Por três anos, pensava diariamente sobre o amor.
Um dia, o amigo de um amigo, em uma quitinete cheia de teares, apresentou-lhe um de seus pequenos, de 40 centímetros. O colocou para tecer.
Heberte começou produzindo cachecóis e, no fim do inverno, havia vendido 300 peças. No verão, fez uma bolsa usando fitas VHS (aquelas da Fashion Week) e encontrou um novo produto. Criou o blog Peixes em Peixes (seu signo e ascendente) sobre o assunto e isso, conta, "chamou a atenção de 'mestres-têxteis'".
Surgiu a primeira exposição e o entendimento de que existia um caminho artístico a ser traçado. Conheceu, então, Silvia Ribeiro. Por intermédio dela, fez os tecidos de uma coleção do estilista João Pimenta, de 2012.
Depois, outras exposições e uma menção honrosa (para sua obra "Assum Preto", no Museu da Casa Brasileira), até a seleção do projeto Melissa Meio-Fio, que viabilizou o Trama São Paulo, de nove meses de duração.
"A trama está em todo lugar e o tear amplia meus contatos, com a moda, com a decoração, com as pessoas e os lugares", diz. "Quando imaginaria que passaria uma tarde no Capão Redondo a tecer? Os entrelaçamentos na cidade deveriam ser maiores. E o tear que me leva a isso. Os lugares ganharam rostos, memórias. Tenho um novo olhar para São Paulo."
A relação com a capital é definitiva na trajetória de Heberte —é falando sobre ela que se emociona. "Em São Paulo, me despi de todo figurino, fiquei básico. E eu precisava disso para me entender. A cidade me acolheu e me transformou."
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