Nos últimos dias Dom Fernando Panico esteve participando de um curso para bispos, promovido pela Arquidiocese do Rio de Janeiro. No encontro, o bispo da Diocese de Crato esteve com o arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Dom Orani Tempesta, que escreveu um artigo sobre a Reconciliação da Igreja com o Padre Cícero Romão Batista.
O texto foi publicado na edição de hoje, 30 de janeiro, no jornal da Arquidiocese carioca. O Cardeal Dom Orani Tempesta, estará em Juazeiro do Norte na próxima terça-feira, dia 02, participando da Romaria das Candeias. (Autora: Patrícia Silva)
Leia o artigo na íntegra:
Padre Cícero
Uma carta do Secretário de Estado de Sua Santidade, o Cardeal Pietro Parolin, datada de 20 de outubro de 2015 e dada a conhecer no dia 13 de dezembro do mesmo ano, data da abertura das portas santas da misericórdia nas catedrais do mundo, reconhecendo as virtudes e bem que o Padre Cícero fez ao povo de Deus no Nordeste foi amplamente divulgada no final do ano passado.
Nosso “Padim Ciço” é assim chamado pelo povo que o admira e diz que é porque, após a proibição de celebrar os sacramentos, ele foi chamado a ser padrinho de batismo de muitas crianças. É com essa expressão carinhosa e confiante que muitos de nossos irmãos, nordestinos ou não, se dirigem ao Padre Cícero Romão Batista (1844-1934). Ele é o sacerdote sobre o qual a mídia, no final do ano passado, tem voltado a atenção, especialmente com manchetes que intentavam passar a mensagem de que a Igreja o tinha reabilitado. Como estamos nos aproximando do dia 2 de fevereiro, data que marca a história da região com a grande procissão de nossa Senhora das Candeias, em respeito ao povo e à verdade sempre é importante aprofundar um pouco mais essa questão.
Padre Cícero nasceu no dia 24 de março de 1844, em uma casa humilde da Rua Grande, hoje Miguel Limaverde, em Crato (CE), cidade localizada no Sopé da Chapada do Araripe, como segundo filho do casal de agricultores Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana. Conta-se que, criado por duas de suas irmãs, Mariquinha e Angélica, sempre quis ser padre e já aos doze anos, depois de ler a vida de São Francisco de Sales, fez, piedosamente, voto de castidade.
Ingressou no seminário da Prainha, em Fortaleza, com 21 anos de idade e aos 26 foi ordenado sacerdote, atuando um pouco na própria cidade de Crato, mas durante 60 anos morou e atuou em Juazeiro do Norte, povoado vizinho à sua terra natal. Aí exerceu um imenso bem à população, segundo as diretrizes pastorais de seu tempo, com o incentivo de missões populares, novenas, terços públicos, procissões e celebração da Missa com frequência.
Aqui é preciso lembrar que era comum a celebração da Eucaristia apenas aos domingos durante o dia. Nelas, na maioria das vezes, as comunhões eram raras. A Missa durante a noite, salvo a de Natal (chamada de “Missa do Galo”), só foi possível com a reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), assim como a comunhão frequente passou a ser estimulada, inclusive às crianças devidamente preparadas, pelo Papa São Pio X (1903-1914), por quem o Papa Francisco tem grande devoção. Desde que era arcebispo de Buenos Aires promovia, anualmente, um encontro com os (as) catequistas no dia 21 de agosto, memória do santo, que faleceu, em odor de santidade, depois de grandes trabalhos em favor do Povo de Deus. Dessas formações de Bergoglio, resultou o livro Anunciar o Evangelho (Campinas: Ecclesiae, 2013).
Voltando, porém, ao Padre Cícero, vê-se que ele foi fiel ao espírito de certa recusa à obediência às ideias portuguesas em si, frutos do chamado Regime de Padroado, no qual Igreja e Estado se achavam ligados para aderir às regras de Roma, ou seja, havia nele plena fidelidade ao Santo Padre, o Papa, e ao Bispo diocesano em comunhão com o Papa, alicerces da unidade a ser mantida na Igreja sob pena de esfacelamento da face humana do Corpo místico de Cristo prolongado na história (cf. 1Cor 12,12-21; Cl 1,24).
O Pe. Comblin, sacerdote belga que muito atuou no Nordeste na época de Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife (PE), escreveu que o Padre Cícero “dedicou-se a corrigir os vícios e os abusos morais”. Proibiu as danças, conseguiu que os homens parassem de beber. Obrigou as prostitutas a confessar seus pecados. Em pouco tempo, Juazeiro tornou-se um modelo de ordem e de virtudes. Padre Cícero era no Juazeiro o equivalente ao Santo Cura D’Ars. (Padre Cícero de Juazeiro. S. Paulo: Paulinas, 1991, apud Henrique Cristiano José de Matos. Caminhando pela história da Igreja. Belo Horizonte: O Lutador, 1993, vol. 3, p. 172).
No entanto, na passagem do Império à República (1889), com grande mudança no cenário político-religioso, o zeloso sacerdote não deixou de entrar em um ritmo de fala um tanto “apocalíptica” (com anúncios de catástrofes eminentes para o mundo). Dizia que com a nova forma de governo brasileiro o fim do mundo estaria próximo. Daí, sempre insistir com seus fiéis sobre o Juízo Final e a necessidade de se confessarem a fim de estarem puros na volta do Senhor e, consequentemente, escaparem dos castigos de Deus para a humanidade pecadora que, segundo suas pregações, não tardariam vir demonstrando a força de Deus.
No entanto, Padre Cícero ficou mais conhecido por todo o Brasil, especialmente a partir do ano de 1889, quando se deram os chamados “milagres da hóstia”. Trata-se do seguinte: Maria de Araujo (1860-1914), conhecida como “Beata”, solteira de 29 anos e costureira de prestígio, foi comungar e viu a hóstia verter sangue, conforme ela mesma narrou ante as autoridades eclesiásticas, no inquérito instaurado para apurar os fatos. Disse Maria que, no dia 6 de março de 1889, “pela primeira vez, fui tomada de um rapto extático, resultando na transformação da hóstia em sangue, tanto que além do que não sorvi, parte caiu na toalha e parte no chão” (Maria do Carmo P. Forti. Maria de Araujo, a beata de Juazeiro. S. Paulo: Paulinas, 1991, apud Matos, obra citada, p. 173).
O fato, tido, então, por milagroso, se repetiu diversas vezes, ocasionando muitas peregrinações do povo a Juazeiro e certo espanto no meio do clero, pouco afeito a esse tipo de fenômeno que precisa ser sempre muito bem investigado. A Igreja é prudente e não afoita na análise de assuntos como esse. Nos meios populares, no entanto, surgiu uma possível explicação para as ocorrências: ante a grande maldade do mundo, dentre as quais se destacou a proclamação da República no Brasil, Nosso Senhor tinha decidido derramar o Seu sangue uma segunda vez para redimir novamente a humanidade. Outros, mais atentos às pregações apocalípticas do zeloso sacerdote, defendiam que o sangue saído da hóstia na boca da jovem Maria era sinal claro do Juízo Final muito próximo. (Cf. Matos, obra e página citadas).
Ora, parece que o Padre Cícero via, apoiado no parecer de um médico e de um farmacêutico local, um verdadeiro milagre na hóstia sangrante, mas o Bispo, à luz do parecer de uma comissão específica por ele nomeada, notou apenas um fenômeno incomum, mas não milagroso. Mais: ambas as lições extraídas do fenômeno foram (e são) exageradas e errôneas. Com efeito, o sacrifício de Cristo na Cruz é único e supera todos os demais sacrifícios (cf. Hb 10,10), de modo a não se poder afirmar que o Senhor voltou a derramar seu sangue pela humanidade, como se tivesse de fazer uma reedição de sua aliança nova e eterna (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 613-614). Sobre o juízo final sabemos que ocorrerá, como professamos no Credo, mas não temos, por escolha divina, como prever com certeza exata o dia e a hora da segunda vinda de Cristo em poder e glória (cf. Mt 24,36).
Pois bem, foi essa interpretação popular, mas errônea dos fenômenos – que alguns afirmavam ser apoiada pelo Padre Cícero – uma das causadoras das reservas de Dom Joaquim José Vieira (1883-1912), Bispo do Ceará, a respeito do famoso sacerdote. Suspeitando de heresia (negação de verdades de fé) e temendo um cisma (rompimento com a Igreja em sua estrutura hierárquica), o Prelado proibiu o padre de atender Confissões, pregar e orientar os fiéis. Em 1886, Padre Cícero foi suspenso de poder celebrar Missas e, mesmo tendo recorrido à Santa Sé, indo, inclusive, pessoalmente a Roma, jamais teve a alegria de poder voltar a exercer o ministério sacerdotal. Contudo – isso é importante –, segundo as notícias, ele nunca teria sido excomungado.
Além disso, outra acusação que se fez contra “Padim Ciço” foi a de ser, na opção política, um apoiador do comunismo. Ele, porém, rebatia a acusação dizendo que “o comunismo foi fundado pelo demônio”. E acrescentava: “Lúcifer é o seu chefe e a disseminação de sua doutrina é a guerra do diabo contra Deus. Conheço o comunismo e sei que é diabólico. É a continuação da guerra dos anjos maus contra o Criador e seus filhos”. (Autorizada pelo Vaticano a reconciliação de Padre Cícero com a Igreja, ACI Digital, 14/12/15, online).
O fato é que em meio a tudo isso, o povo nunca deixou de procurar o padre. Ele se tornou, na verdade, o grande Patriarca do Nordeste e vivia dando conselhos, resolvendo conflitos de várias naturezas, dando remédios certos para muitas doenças e até ajudando na escolha de matrimônios (tinha fama de “casamenteiro”).
Preocupava-se também com os mais pobres, especialmente os trabalhadores e as crianças. A essas estimulava a aprenderem algum bom ofício da época a fim de se tornarem, no campo financeiro, independentes e poderem ajudar a seus pais. A partir de 1911, Padre Cícero, já afastado das atividades sacerdotais, entrou na política, muito mais forçado pelas circunstâncias do que motivado por gosto pessoal. Chegou a ser o primeiro prefeito de Juazeiro, emancipado naquele ano, e vice-governador do Ceará por dois mandatos. Em 1914, juntando-se a vários coronéis locais, foi contra a intervenção do Governo Federal no Estado.
Padre Cícero faleceu em 20 de julho de 1934, com 90 anos de idade, em paz com a Igreja que tanto amou, tendo em seu sepultamento aproximadamente 60.000 pessoas, que logo passaram também a peregrinar a Juazeiro a fim de rezar a Deus por meio do “Padim Ciço”. Fizeram, com isso, que aquela cidade se tornasse a “cidade santa” a receber, segundo dados do site oficial do Governo do Estado do Ceará (www.juazeiro.ce.gov.br) cerca de 2,5 milhões de pessoas por ano.
Tudo isso motivou a Diocese de Crato, por meio de seu Bispo Diocesano, Sua Excelência Dom Fernando Panico, a pedir que a Santa Sé estudasse o caso do Padre Cícero. Agora, o Papa Francisco, por meio do Eminentíssimo Senhor Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado da Santa Sé, enviou uma Carta na qual aponta o lado benemérito de todo o apostolado que se realiza em torno da figura do sacerdote a favor do Povo de Deus. É esse ato que a imprensa chamou de reabilitação do Padre Cícero com a Igreja, embora, como dito, ele nunca teria sido excomungado. Ao contrário, bons historiadores garantem que ele morreu firme na fé católica. (Cf. Matos. Obra citada, p. 174).
Fazemos, pois, votos de que a questão, já estudada há tempos, chegue a bom termo com a graça de Deus, pois Ele, dentro de seus santos e sábios desígnios, nunca deixa de atender ao seu povo sedento de santos pastores e dignos ministros, a fim de que estes possam, nas dificuldades do dia a dia, batalhar em demanda da Jerusalém celeste. Certamente a notícia traz alegria não só aos irmãos nordestinos, mas a todos os brasileiros que amamos nosso País e queremos ver o seu autêntico progresso, livre de todas as mazelas e corrupções nos vários âmbitos em que elas se encontrem.
Aqui no Rio de Janeiro a presença nordestina é grande e a influência do Padre Cicero se faz sentir com muita clareza, principalmente na “feira de São Cristóvão”, que concentra as tradições nordestinas e sente-se o carinho do povo pelo seu “padim ciço”.
Sem dúvida que um belo sinal de trabalho evangelizador é a tradição nordestina do Padre Cícero, e a Igreja reconheceu essa missão. Algumas questões da vida do padre ainda estão envoltas em estudos de questões controversas, porém é inegável a necessidade de evangelização.
Que no próximo dia 2 de fevereiro, festa de Nossa Senhora das Candeias, no evento criado por ele, as pessoas possam encontrar a luz que é Cristo, que ilumina a todo homem que vem a este mundo.
Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
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